Dirigido por: David Cronenberg
Eis aqui mais um filme, de um diretor autoral. O canadense está entre os cineastas mais originais da história. Grandes realizadores transitaram no gênero terror e contribuíram muito bem. Stanley Kubrick (O Iluminado), Steven Spielberg (Tubarão), Ridley Scott (Alien - O Oitavo Passageiro). Mas poucos foram tão pungentes quanto David.
Percebe-se sua forte influência no expressionismo alemão, principalmente em The Fly, que deu o início ao gênero terror no cinema. Nota-se muito da influência de Fausto (1926), dirigido por F. W. Murnau. E para a proposta de terror que David adota, essa fonte histórica do cinema é fundamental para ele beber. Sim! Há muito do expressionismo alemão em seus filmes. Mas, David conseguiu criar seu próprio subgênero: O Body Horror.
Tradução: Horror Corporal. O termo já se explica. O canadense é um gênio, em causar nojo, medo, angústia com o corpo. Claro! Com uma grande ajuda da maquiagem. O diretor explora muito bem essa característica em seus filmes, já deixando até uma pupila! Julia Ducournau, que explorou muito bem esse sub-gênero com Titane (2021).
Em A Mosca, juntando o Body Horror, com os elementos do Expressionismo Alemão, criou-se uma agonizante história de terror e suspense. São muitos filmes de qualidade desse diretor, onde ele juntou esses dois “elementos” (Videodrome, Crash, Crimes do Futuro). Mas A Mosca, talvez seja sua obra mais famosa no mainstream. O público do cinema estava bem aberto a novas ideias nos anos 80. Filmes de comédia, ação e terror enchiam as salas.
Citei Fausto anteriormente. Em The Fly, também somos apresentados a um cientista excêntrico e genial. Na cena inicial, sem arrodeios, somos logo apresentados ao cientista Seth Brundle (Jeff Goldblum) e à jornalista Veronica Quaife (Geena Davis). Ele tenta convencê-la de que, entre tantos cientistas naquela sala, ele era o que tinha a ideia mais revolucionária. Mas a jornalista logo perde o interesse, quando ele hesita em contar sua ideia. Porém, ele vai atrás dela e a convence a ir em seu laboratório. Percebemos que Seth está atraído por Veronica.
Ao chegar no laboratório, notamos de cara que as coisas ruins acontecerão ali. A fachada escura e suja, nos dá esse sinal. Ao entrarem no lugar, levemente mais limpo, Seth toca piano. Como disse, ele está atraído por Veronica e não preocupado em lhe explicar sobre a experiência. Porém, a jornalista com seu tino, o induz a falar sobre o Telepod. Nada mais, nada menos que uma máquina de teletransporte. Certa da loucura do cientista, Veronica não acredita. Até que Seth demonstra o experimento. A meia-calça de Veronica é teletransportada de uma cabine para outra, diante de seus olhos. A jornalista, antes ressabiada, agora convencida da capacidade de Seth, liga seu gravador. Só que, antes que Seth falasse muito, ela precisava trocar a fita. O cientista vendo, logo se irrita, pensando que o interesse de Veronica era apenas pessoal. Eles se desentendem e ela vai embora.
Veronica, no dia seguinte, apresenta a gravação a seu chefe (e ex-namorado), que não se convence da veracidade da experiência. E para sua surpresa, Seth a procura no escritório. Comendo um hamburger numa lanchonete, Seth explica mais educadamente a Veronica, o porquê de não permitir que sua ideia seja contada ao mundo naquele momento. Ele faz uma proposta: A jornalista deve acompanhar o andamento da evolução da invenção de Seth: Tentar teletransportar seres vivos. Pois, até agora, a máquina só conseguiu teletransportar objetos inanimados.
Acompanhando a experiência, os dois acabam se apaixonando e tendo um caso. O que ajudou, inclusive, Seth a entender sobre “carne” e ensinar isso à máquina. Ele finalmente consegue teletransportar um babuíno, para a alegria de ambos e combinam de viajar, enquanto o babuíno passa por exames, para definir a segurança da máquina. Vamos dar uma pausa.
Até agora, percebemos a minúcia no trabalho dos dois. Mesmo sabendo o nome do filme e que é um terror, nos perguntamos o tempo inteiro: como tudo pode dar errado, se tudo está dando certo? Ambos eram cuidadosos nos experimentos. Em que situação, Seth decidiria do nada, entrar em uma das cabines para se teletransportar e, acidentalmente, uma mosca acabaria entrando? Lembram que Seth estava começando a entender sobre “carne”? Há uma metáfora aqui. Fala-se da carne no sentido químico e no sentido psicológico. Seth estava aprendendo sobre como se relacionar com uma mulher. E algo que ele não havia conhecido, o ciúmes, vem à tona e desencadeia a pergunta feita aí em cima. Ele entra na cabine para se teletransportar, e uma mosca entra com ele.
Já a noite, com a presença de Veronica, para surpresa do espectador, Seth saiu normalmente da outra cabine. Aparentemente, ileso. Só que, as mudanças começam a aparecer. Primeiro nas características de força física de Seth e depois… bom, estamos falando de David Cronenberg! A cada cena, vemos Seth se transformar numa mosca. E essa mudança gradual foi perfeita para a proposta do diretor. Imaginem como seria comum, se o cientista já saísse como mosca da cabine e passasse a se comportar como o inseto. Não era isso que David queria (e nem o escritor do livro que deu origem a adaptação do canadense, The Fly, de George Langelaan). David nos mostra a mudança gradativamente. Cena a cena, algo agoniante e nojento acontece. Como uma orelha caindo, ou a face de Seth espinhada, ou o cientista se alimentando, regurgitando o ácido no alimento para umedecê-lo, como faz uma mosca. Temos ali Homem, Homem-mosca e a Mosca. E só Cronenberg poderia nos mostrar isso, da maneira mais horripilante possível. É o gênio do Body Horror!
Temos que aplaudir de pé, o trabalho incrível da maquiagem e penteados, óbvio! Merecidamente vencedores do Oscar! Sem eles, David não conseguiria atingir a sua proposta de nos causar náuseas.
Guillermo del Toro, é outro diretor que bebe dessa mesma fonte de Cronenberg. Usando elementos do terror e do Body Horror. Mas, Del Toro está mais para a linha das feras. Ele usa a computação gráfica para criá-las. Por isso, afirmo com toda a certeza, que Cronenberg é o dono desse gênero. Lembramos do buraco na barriga em Videodrome (1983), as cicatrizes em Crash - Estranhos Prazeres (1996), os cortes e as costuras em Crimes do Futuro (2022)… Assistam! Mas com um remédio de enjoo do lado.