quarta-feira, 19 de junho de 2024

Críticas - Anatomia de uma Queda (2023)

 

Dirigido por Justine Triet


Existe um subgênero no cinema, que já foi bastante explorado e nos entregou filmes marcantes. Questão de Honra (1992), 12 Homens e uma Sentença (1957), são só alguns exemplos de grandes obras de tribunal. O que causa mais empolgação nesses filmes, é a adrenalina do tribunal aberto, onde os advogados têm que praticamente atuar para convencer os jurados sobre a sentença do réu. CONVENCER, é a palavra chave desses filmes, sem dúvida.


E o convencimento precisa vir carregado de fatos. E aí vem o suspense e o mistério característicos dos romances policiais. Os fatos novos vão surgindo para os personagens, e para nós também. Nós! Nós somos os principais personagens nestes filmes. Porque os espectadores também são colocados no papel de julgadores, desde o primeiro minuto. E é aí que Anatomia de Uma Queda brilha. Porque a sentença, pouco importa realmente no que diz respeito ao julgamento. O que mais importa, é a dúvida que cresce exponencialmente, sobre o caráter da nossa ré, Sandra.


A dúvida, é a chave desta obra de arte. A maneira como a Justine Triet e o Arthur Harari, foram pingando novos fatos, fazendo com que as dúvidas crescecem ainda mais, é o que diferencia este filme dos outros do subgênero. Nos outros, a sentença final é bem amarrada, com todos os fatos na mesa e a conclusão deles. No filme francês… só terminamos com mais questões.


O filme começa com Sandra (Sandra Hüller) recebendo uma jornalista para uma entrevista numa casa afastada da civilização nos alpes. Ela está animada com a entrevistadora, até saindo do assunto de maneira solta e descontraída. Aí, vem a música alta. Uma versão instrumental de P.I.M.P., do 50 Cent, que cola na cabeça de maneira incrível.


Sandra fica incomodada, explicando que o seu marido está ouvindo a música enquanto trabalha no sótão. Sandra dispensa a jornalista, porém marcando um futuro encontro. E aí vem o questionamento: o esposo de Sandra fez aquilo para incomodá-la? Parece ser claro que sim. E por quê? Sandra não recebia visitas rotineiras. Por que aquela em específico o incomodava, ao ponto de ter um comportamento tão infantil?


Sandra então sobe as escadas, enquanto seu filho, Daniel (Milo Machado Graner), sai com o cachorro, Snoop (Messi). Seguimos Daniel com o cachorro por um longo caminho na neve, até que ele volta para casa. Snoop está incomodado, então Daniel o solta. O cão late estridente, diante do corpo falecido e ensanguentado de Samuel (Samuel Theis). Daniel se aproxima, percebendo o corpo e ele começa a gritar a sua mãe, que surge da janela desesperada.


Este é um ótimo início de filme. Misterioso e intrigante no ponto certo. Afinal, por que seguimos Daniel e não ficamos na casa? Provavelmente, aconteceria uma discussão de casal do nível de Charlie e Nicole Barber (Adam Driver e Scarlett Johansson) em História de um Casamento (2019), que certamente levantaria o espectador do sofá. Mas não é assim que Anatomia de uma Queda quer te tocar.


Samuel está morto. Sandra e seu filho estão devastados. Um amigo de Sandra, Vincent (Swann Arlaud) que é advogado, a alerta de que haverá uma investigação, para saber o que aconteceu com Samuel, a colocando inclusive como uma possível suspeita. É aqui que o filme começa de fato. 


Descobrimos que Daniel é cego! E ele usa adesivos em alto relevo nas paredes de cada cômodo para se guiar. É perguntado a ele se não ouviu uma discussão entre os pais, pois ele saiu com o cachorro. Ele costumava sair com Snoop quando os pais discutiam. Ele afirma que não houve discussão, que estava muito seguro sobre isso, pois estava na parte de fora da casa, perto de uma casinha, onde podia escutá-los perfeitamente, mesmo com a música alta. Eles reproduzem a discussão, para testar Daniel. Ele não escuta. O advogado tenta intervir, dizendo que o teste era inútil, pois Sandra já havia dito que não houve discussão. Mas eles insistem. É então que Daniel diz que cometeu um erro. Que estava na verdade dentro de casa. Eles refazem o teste, e Daniel ouve a discussão.


Aqui, Justine Triet brilha! Pois coloca um personagem importante, numa posição de “não-confiável”. Ele errou nesse depoimento, poderia muito bem errar posteriormente. Ou ele não errou? Só de gerar essa dúvida, o filme penetra em nossas mentes, para nunca mais sair. 


A dualidade é a grande marca deste filme. Obviamente, por conta de inconsistências na investigação, Sandra é chamada a julgamento. E novos fatos, carregados de novos questionamentos surgem, que fazem o filme escalar em suspense e mistério. Chega-se a duas possibilidades sobre a morte de Samuel: Suicídio ou Homicídio.


No primeiro caso, ele teria se jogado do sótão, batido a cabeça na quina do telhado da casinha do lado de fora e caído na neve. No segundo caso, Sandra, após uma discussão grave, teria acertado a cabeça do esposo com um objeto pesado, enquanto ele tentava afastá-la perto da janela do sótão, e o empurrado para baixo, onde ele teria batido no telhado, e caído na neve.


O advogado de Sandra, tentava provar que Samuel tinha depressão. Não conseguia mais escrever, e tinha inveja do sucesso da esposa, que já o traíra com outra mulher. Daí, entendemos a primeira cena. Os flashbacks provam que isso é verdade. Que ele abandonou o terapia, que continuou se medicando e teria cometido suicídio, após perceber que sua esposa estava sendo entrevistada por outra mulher. É uma dessas sequências, que o Messi brilhou! Daniel faz um tente com ele, para provar se o pai realmente havia tentado suicídio em outra oportunidade ou não. O cachorro atuou brilhantemente, se fazendo de doente, babando, revirando os olhos! É maravilhoso de ver!


Ok! O suicídio parece fazer sentido. Mas a promotoria também trabalhou duro. Para que o homicídio fosse comprovado, era necessário a prova de que havia tido uma briga pesada, algo que Sandra negava, afirmando que eles nunca haviam chegado às vias de fato. E aí, surge uma prova… uma fita de áudio gravada por Samuel. Ele costumava gravar seu dia-a-dia. E nesta fita, há uma briga nível Charlie e Nicole. É aqui que os personagens mais se expõem, e colocam, em questão de minutos, o que era aquele casamento. Samuel de fato invejava a esposa, a acusando de ter roubado uma ideia sua e feito sucesso com ela, a traição ainda o machucava, Sandra não gostava da ideia deles terem se mudado… e no auge da discussão, quando Sandra parte para cima dele, somos retirados da cena, de volta para o tribunal, ficando apenas com os áudios sugestivos da briga. Então, já praticamente no final do filme, finalmente foi exposto o caráter de Sandra: Ela é capaz de mentir. E principalmente, é capaz de bater no esposo. 


Este praticamente foi o último fato importante do filme. Obviamente, Sandra é absolvida. Pois não encontraram a arma do crime, o objeto pesado que Sandra teria golpeado seu esposo, e não houve confissão. Não precisa ser formado em direito e passado na prova da OAB, para saber que sem a arma do crime, uma confissão, ou uma prova em vídeo ou áudio, não existem possibilidades de julgar um réu culpado de homicídio. Mas isso pouco importa no filme. Afinal, Sandra poderia ter escondido bem o objeto, ou encontrado uma hipotética fita e a queimado. O que mais importa aqui, é o nosso julgamento, diante de um deleite de fatos e questionamentos.


Não ajuda muito o julgamento, com uma personagem tão enigmática. Suas expressões são carregadas de dualidades e assimetrias. Os únicos momentos de preocupação de sua parte, onde vemos um sentimento real, é quando ela pensa no filho. Afinal, com ela presa, seu filho cego ficaria sozinho no mundo. E isso não ajuda muito Sandra, não é mesmo? Do que uma mãe ou um filho seriam capazes de fazer, para não se separarem?


Sandra Huller foi fantástica. Ela representa a ideia do filme de maneira perfeita, irretocável. Foi merecidamente indicada ao Oscar de Melhor Atriz na edição de 2024, edição vencida por Emma Stone, que brilhou em Pobres Criaturas (2024). Ela foi o enigma! A dualidade! Uma atuação arrebatadora.


Justine Triet faz aqui o seu melhor filme, com sua melhor direção. Já havia feito Na Cama com Vitória (2016), uma comédia romântica fora dos padrões, que também traz uma personagem mulher bem profunda. Anatomia de uma Queda é um filme muito bem executado. A gente vê a ideia sendo imposta em cada cena, e mexendo com espectador a cada frame. Ela faz um filme que gera uma discussão eterna. Em que o suspense e o mistério não pararam de escalar ao final do filme, quando Snoop pula na cama com ela. Merecidamente vencedor da Palma de Ouro em Cannes 2023. 


Filmes sem um desfecho claro, costumam incomodar as pessoas. Muita gente não gosta da ideia de assistir um filme por 2 horas e 30, e não saber o desfecho principal do filme. Mas a ideia de um filme assim, é justamente fazer a gente pensar, calcular, fazer testes em nossa mente sobre a anatomia da queda de Samuel…! É uma proposta de filme corajosa e quando bem executada, funciona muito bem. E aí? O que você acha? Sandra matou ou não matou seu esposo?


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