Dirigido por Julia Ducournau
Muitos amantes da sétima arte, ao pensar em cinema e premiação, automaticamente lembram do Oscar. Quando queremos argumentar o quanto um filme é bom, dizemos quantas estatuetas ele foi indicado ou venceu. O crescimento midiático e representativo do Oscar está ligado à evolução do cinema em Hollywood, iniciado lá no final da década de 20. Mas, assim como o cinema não é só Hollywood, Brad Pitt, Scorsese e Marvel vs DC, Premiações e reconhecimento não vem só da Academia Norte-Americana.
Ok: O Oscar nos últimos anos tem se expandido para fora da Califórnia. Vide Parasita, Bong Joon Ho, Chloé Zhao, Steven Yeun… Mas, ainda está longe de ter olhos em todos os continentes. Em todas as edições, alguma obra prima escapa. Nós brasileiros, podemos citar Bacurau, por exemplo, que poderia tranquilamente ter tido pelo menos 6 indicações. Mas, sabemos que o Oscar tem seus bastidores, trabalhos de lobby… enfim.
Olhemos para fora de Hollywood e Oscar, e encontraremos alguns Festivais e premiações tão renomados quanto. Veneza e seu Leão de Ouro, Berlim e o Urso de Ouro e, para mim o mais charmoso, Cannes e a Palma de Ouro. Grandes diretores e filmes já passaram por lá e tem em suas prateleiras a Palme d´Or. Martin Scorsese (Taxi Driver (1976)), Federico Fellini (A Doce Vida (1960)), Akira Kurosawa (Kagemusha (1980)), Andrzej Wajda (Homem de Ferro (1981)), Jane Campion (O Piano (1993)), Quentin Tarantino (Pulp Fiction (1994))... Deu para entender.
Todos esses filmes têm em comum ideias herméticas, grandes atuações e momentos de choque. A mulher morta em Barton Fink, Robert De Niro salvando Jodie Foster da prostituição infantil em Taxi Driver, Tudo em Pulp Fiction… e, em 2021, os jurados viram uma mulher transando com um Cadillac…
Julia Ducournau choca Cannes com seu corajoso Titane. Sem dúvidas, já é uma das grandes obras do início da década. É o tipo de filme que não dá para ser explicado, tem que ser visto. É como uma outra obra, também premiada em Cannes, que lembra em alguns aspectos o filme francês; Crash: Estranhos Prazeres (1996) , de David Cronenberg. Assim como na obra de Júlia, o filme do canadense também trata de distúrbios neurológicos, causados por acidentes, e que em consequência trouxeram desequilíbrios mentais/sexuais ligados a automóveis. Sim, o tesão por metal amassado em Crash, é visto no fascínio por metal e óleo em Titane.
Explicado em palavras, há o risco do filme soar tosco. Mas na verdade é muito diferente do tosco. É um filme cheio de camadas, com atuações brilhantes e desligado de qualquer mesmice já vista. Por isso ganhou o principal prêmio em Cannes.
O filme inicia trazendo os principais personagens: um carro e Alexia. A menina imita o som do motor, o que causa irritação em seu pai. Julia já quer nos mostrar que existe uma ligação entre carros e Alexia. A menina irrita tanto seu pai, que ele acaba perdendo o controle do carro, enquanto tentava recolocar o cinto em sua filha, e causa um acidente. Vemos apenas sangue no vidro traseiro do carro. Alexia passa por uma cirurgia e uma placa de titânio (Daí o nome do filme) é colocada em sua cabeça. O primeiro choque no filme, é quando Alexia (CRIANÇA!) sai do hospital, corre direto para o carro de seu pai, e o acaricia, o abraça e o beija.
Há um corte de cena, e pulamos para Alexia adulta (Agathe Rousselle). Já notamos que ela virou uma dançarina sensual, fazendo seus números em… carros! Assim como outras garotas. Com o passar das primeiras cenas, percebemos o quanto ela está distante humanamente e o quanto ela é próxima mecanicamente, principalmente na área sexual. Vemos isso na já citada e histórica cena do sexo com o cadillac, e em sua aversão corporal por pessoas dos dois sexos. Mas, ela demonstra essa aversão, matando essas pessoas. Ela vira uma assassina em série.
Óbvio, que a polícia começa a ficar em sua cola, com retratos falados dela espalhados pela cidade. Ela acaba tendo uma ideia para escapar; se disfarçar de homem e fingir ser o filho perdido (Adrien) de um bombeiro viciado em esteróides (Vincent Legrand (Vincent Lindon)). A relação entre os dois vive em altos e baixos, mas um fator inacreditável e perturbadoramente surreal, acontece na vida de Alexia. É o grande plot twist do filme. Obviamente, não dá pra contar. Mas, num filme tão corajoso como esse, tranquilize-se ao saber que você vai se impressionar.
Não foi a estreia de Julia no cinema. Ela já foi bem aplaudida por outras grandes obras como Júnior (2011) e Raw (2017). Outro detalhe importante em sua autoria, que não pode ser esquecido, é o poder feminino, presente nos três filmes citados.
Mas Titane é sem dúvidas sua criação mais autoral e impressionante de todas. A coloca no radar do cinema mundial e a faz entrar numa lista seleta de cineastas. Ela já é enorme no cinema, com uma palma e sem estatueta.